Uma noite antes de ficar sabendo que havia recebido o Prêmio Nobel de medicina, em outubro de 2009, o pesquisador bioquímico Jack W. Szostak diz ter dormido como um bebê.
''Eu não perderia uma noite de sono por causa de um trabalho que fiz na década de 1980’', disse rindo Szostak, de 58 anos, durante uma recente entrevista de duas horas em seu laboratório, no Massachusetts General Hospital. ''Era um trabalho antigo’'.
O ''trabalho antigo’', pelo qual ele já havia recebido o Prêmio Lasker, era ajudar a identificar a natureza e a bioquímica dos telômeros, as extremidades de cromossomos. Compreendê-los pode ser a chave para destravar os mistérios do câncer e do
envelhecimento celular. Segue uma versão editada de nossa conversa.
P: A pesquisa de telômeros foi o trabalho de sua vida?
R: Era um tipo de projeto paralelo. Antes de começar a trabalhar com telômeros, eu vinha estudando a recombinação de DNA. O que as células fazem quando veem um pedaço quebrado de DNA? Células não gostam dessas quebras.
Elas fazem basicamente todo o possível para consertar as coisas. Se um cromossomo está quebrado, as células reparam essa quebra usando um cromossomo intacto. Esse processo é chamado de recombinação. E era isso que eu vinha estudando.
Agora, os telômeros: eles são as extremidades dos cromossomos, as pontas, e não recombinam. Certo dia em 1980, ouvi Liz (sua colega Elizabeth H. Blackburn) falando numa conferência sobre o comportamento dos telômeros. Foi o contraste entre o DNA que ela estava analisando e o material que eu estava estudando que me chamou a atenção. Eu queria entender o que estava acontecendo. Então escrevi para Liz logo em seguida.
P: O que vocês descobriram juntos?
R: Descobrimos o que acontecia nas extremidades de cromossomos normais.
Desvendamos a bioquímica fundamental e mostramos que muitos organismos diferentes usam essa bioquímica. Descobrimos que havia uma enzima, a telomerase, que agrega DNA às extremidades dos cromossomos para equilibrar o DNA que é naturalmente perdido quando as células crescem.
Mais tarde, conforme as pessoas do campo começaram a enxergar a importância disso, a pesquisa de telômeros simplesmente decolou. Ficou claro que a perda de DNA nos telômeros podia ter algo a ver com o envelhecimento.
Subsequentemente, vimos que em quase todos os cânceres, a telomerase fica ativada de forma que aquelas células crescem indefinidamente. Claro, é muito bom quando um trabalho realizado há tanto tempo acaba se mostrando importante! Mas a verdade é que meu trabalho partiu em vários caminhos diferentes.
P: O que você estuda hoje?
R: As origens da vida. Em meu laboratório, estamos interessados na transição da química ao começo da biologia na Terra. Voltemos à Terra inicial – digamos que em algum momento nos primeiros 500 milhões de anos. E digamos que a química certa para criar os blocos de construção da vida aconteceu e você tem as moléculas certas para criar a fagulha da vida. Como esses elementos químicos se unem e agem como uma célula? Você quer algo que possa crescer e se dividir – e, o mais importante, exibir uma evolução darwiniana.
Estudamos isso tentando reproduzir esse processo no laboratório. Pegamos elementos químicos simples e os unimos da maneira correta. E estamos tentando construir uma célula muito simples, que possa se parecer com algo que teria se desenvolvido espontaneamente no começo da terra.
P: Até onde vocês chegaram?
R: Talvez eu possa dizer que estamos na metade do caminho.
Achamos que uma célula primitiva precisa ter duas partes. Primeiro, ela precisa ter uma membrana celular que possa ser uma fronteira entre si mesma e o restante do mundo. E é preciso haver um material genético, para desempenhar algumas funções que sejam úteis à célula e possam se replicar para serem herdadas. A parte que pudemos entender razoavelmente bem é a da membrana. O material genético é o maior problema; a química é mais complicada. O enigma tem sido compreender como uma molécula como o RNA pôde se replicar antes de existirem enzimas e todos esses aparatos biológicos complexos, maquinário de proteínas, que temos hoje em nossas células.
P: É bastante incomum que um pesquisador com grandes descobertas numa área científica passe a estudar algo completamente diferente. Por que trocar de campos?
R: Porque em meados da década de 1980, ficou claro quais eram as dúvidas com os telômeros e que elas seriam estudadas perfeitamente bem por outras pessoas. Não sou o tipo de pessoa que aprecia muita concorrência. Não gosto da sensação de que, se eu não estivesse realizando certo tipo de trabalho, isso não faria diferença. Se algo vai ser realizado de qualquer forma, qual é o sentido, certo?
Durante cerca de um ano, frequentei cursos aqui em Harvard, buscando por algo para trabalhar. Examinei a neurociência cognitiva, que é incrivelmente fascinante, mas parecia difícil demais. A estrutura do RNA me atraiu, pois poderia ser a chave para entender o início da vida na Terra.
P: Você já trabalha nessa questão há um quarto de século. Nunca se cansa do assunto?
R: Não. Não. Pois isto não é uma questão monolítica na qual não existe nada interessante até chegar ao fim. Na verdade, o problema se divide em talvez uma dúzia de problemas menores. Cada um tem partes interessantes. Posteriormente, todos se encaixarão.
Por exemplo, fizemos progressos na questão de como criar uma membrana de célula primitiva. Outros mostraram como um mineral comum da argila, a montmorilonita, pode ter desempenhado um papel ajudando a produzir RNA.
Nosso laboratório mostrou como ela pode ajudar as membranas a formar e trazer o RNA para dentro da membrana.
P: Você tenta verdadeiramente criar vida em seu laboratório. Essencialmente, você está tentando provar a teoria evolucionária em uma placa de Petri. Como os fundamentalistas religiosos reagem ao seu trabalho?
R: Depois que o trabalho com a argila foi publicado, recebemos muitos e-mails de fundamentalistas: ''Isso é maravilhoso. Estamos muito felizes que você tenha mostrado que tudo aconteceu conforme está escrito na Bíblia ou no Corão’'. Em Gênesis, tudo começa com a argila, ou barro.
P: Crescendo no Canadá, você era uma daquelas crianças que realizavam experimentos químicos na cozinha?
R: Fizemos coisas ridiculamente perigosas. Mas elas também eram emocionantes. Lembro-me que em 1967, quando houve aquele terrível incêndio no foguete Apollo 1, da Nasa, que matou três astronautas, meu pai produziu oxigênio puro e colocamos fogo num pequeno recipiente. De repente, tínhamos um jato e um fogo inacreditáveis. Você podia ver exatamente o que havia acontecido.
Não tem como fazer isso numa casa de hoje. Imagino que muitas crianças tenham perdido olhos e membros com as coisas antigas. A preocupação é compreensível. Mesmo assim, uma criança precisa ver algo acontecer para ficar animada. Meu filho mais novo, de 11 anos, gosta de química. Encontrar algo que ele ache emocionante experimentar é um desafio.
P: O Prêmio Nobel mudou sua vida?
R: nada significativo está diferente. Mais pessoas me abordam em conferências e querem tirar uma foto comigo. Eu não diria que ficou mais fácil obter a aprovação de nossos artigos ou financiamentos de pesquisa.
O que acontece na cerimônia do Nobel é que, durante uma semana, você é tratado como uma estrela. Um motorista o leva para qualquer lugar. Você tem acompanhantes para assegurar que você sempre chegue onde está indo. E você sempre fica na parte de trás da limusine. Então ouvimos essa história, sobre um laureado do Nobel que volta para casa, abre a garagem, senta no banco traseiro de seu carro e fica esperando.